Os cânticos e os gritos racistas que foram proferidos pelos adeptos vimarenses, em 2020, contra o jogador Moussa Marega, do FC Porto, chocaram o país e o universo futebolístico, tendo sido lançado o debate, até à altura marginal, sobre o racismo no futebol.
Contudo, embora estes comportamentos possam ser sancionados, moral e juridicamente, a utilização da cor da pele, dentro e fora dos estádios, enquanto instrumento de repressão contra homens e mulheres atletas, não é um fenómeno recente, saindo muitas vezes impune. Hulk, num jogo contra o Benfica, em 2012, e Shade Pratt, num jogo contra o Cadima, em 2019, são alguns dos nomes que, no passado, também invadiram as manchetes dos jornais por motivos idênticos. Juntamente com todos os outros casos de discriminação no futebol português, relembraram que o incidente em Guimarães não foi um caso isolado.
Porém, a sociedade portuguesa, que se diz ser tolerante e igualitária, ainda encara o privilégio branco e a opressão negra em tom de negação. Como evidenciou o antropólogo Nuno Domingos, em 2014, com o artigo “As lutas pela memória de Eusébio”, os valores imperialistas e hegemónicos continuam atuais e assentes no discurso público, prevalecendo a ideia de que Portugal foi, ao contrário dos outros países colonizadores, um explorador pacifico e amigável.
A título de exemplo, quando questionado sobre a polémica que envolveu o treinador- adjunto do Basaksehir, Pierre Webó, e o árbritro Sebastian Colţescu, em finais do ano passado, o atual treinador do Benfica, Jorge Jesus, respondeu que o racismo «está muito na moda» e que «qualquer coisa que se possa dizer contra um negro é sempre sinal de racismo.» Sem querer escapar à abordagem sobre a intolerância e a violência associadas ao futebol nacional, é importante contextualizar o episódio que aconteceu frente à equipa do PSG. Quando o árbitro Colţescu sugeriu que o treinador-adjunto do Basaksehir fosse expulso, a expressão ‘negro’ foi utilizada para fazer referência ao ex-futebolista. Nesta situação, o que Jorge Jesus vulgarizou foi o facto de a terminologia ‘negro’ resumir a identidade à cor, pois se o mesmo árbitro quisesse expulsar um treinador-adjunto branco não teria feito alusão à sua branquitude. Chamá-lo-ia pelo nome.
No entanto, a banalização de atitudes racistas não é apenas protagonizada por jogadores de equipas rivais ou elementos das equipas técnicas. Nos relvados e em sports bars, a
normalização do racismo está enraizada na opinião pública que insiste em defender que a responsabilidade do fenómeno deve ser unicamente atribuída a um conjunto de indivíduos dissemelhantes da sociedade mais ampla. «Não podemos permitir que meia dúzia de energúmenos acéfalos ponham em causa toda uma nação», pode ler-se num dos comentários do Facebook, face ao Caso Marega, devolvendo-me para a hashtag “Portugal não é um país racista.” Ainda há quem vá mais longe e acabe por tropeçar nas suas próprias palavras, quando, na mesma publicação, escreve: «vergonha foi um preto provocar tanto branco», em resposta ao dedo do meio que Marega lançou aos adeptos do Vitória de Guimarães.
Este é o espelho da moralidade portuguesa que, com vestígios coloniais e racistas, finge ser daltónica ao mesmo tempo que invade os balneários e as bancadas do desporto-rei não só com artigos de pirotecnia, mas também de xenofobia. Decerto, a queda do regime fascista deixou por aniquilar as velhas representações hegemónicas que permanecem vivas e ruidosas, não estivesse a extrema-direita portuguesa empoleirada nas costas da liberdade de expressão.
No futebol português, tal como acontece no futebol internacional, os indivíduos acusados de incentivarem a violência, o racismo, a xenofobia e a intolerância são comumente associados a subculturas futebolísticas – neste caso, os ultras – das quais alguns adeptos mais radicais, na sua maioria do género masculino e com idades entre os 21 e os 30 anos, já estão referenciados judicialmente pela prática de crimes violentos, segundo o Relatório de Análise da Violência Associada ao Desporto (RAViD). De acordo com o mesmo estudo, face à época desportiva 2019/2020, o futebol ganhou a taça da modalidade com mais incidentes registados, estando na liderança do painel várias equipas da 1.ª Liga, nomeadamente o Sporting Clube de Braga, o Sporting Clube de Portugal, o Vitória SC, o FC Porto e o SL Benfica. Relativamente ao incitamento ao discurso de ódio, registaram- se um total de 69 incidentes distribuídos desproporcionalmente pelas várias competições futebolísticas.
Ainda assim, limitar o fenómeno do racismo futebolístico às claques é o mesmo que chutar a bola para longe do campo, não fazendo jus à análise do racismo estrutural e institucional enquanto problemática bem mais complexa no desporto e na sociedade.